A (IN)EFICÁCIA SOCIAL DO PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA TORTURA

RESUMO: O teor normativo do Princípio da proibição da tortura padece de ineficácia social para sua plena aplicabilidade, devido a traços da cultura brasileira, relacionados à prevalência das relações pessoais sobre o âmbito individual do sistema legal, contexto este em que a autoridade do agente público responsável pela guarda e proteção do custodiado se confunde com abusos que culminam no desrespeito à dignidade humana.

 

A (IN)EFICÁCIA SOCIAL DO PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA TORTURA
Milena Maria Cavalcante Testa,
Graduanda em Direito pelo CESMAC,
Perita Criminal do Estado de Alagoas e
Especialista em Políticas e Gestão em
Segurança Pública.

RESUMO: O teor normativo do Princípio da proibição da tortura padece de ineficácia social
para sua plena aplicabilidade, devido a traços da cultura brasileira, relacionados à prevalência
das relações pessoais sobre o âmbito individual do sistema legal, contexto este em que a
autoridade do agente público responsável pela guarda e proteção do custodiado se confunde
com abusos que culminam no desrespeito à dignidade humana.

PALAVRAS-CHAVE: Princípios. Dignidade Humana. Direitos Humanos. Tortura. Eficácia.

ABSTRACT: The normative content of the Principle of prohibition of torture suffers from
social inefficacy to its full applicability due to traces of Brazilian culture, related to the
prevalence of personal relationships on the individual scope of the legal system, in which
context the authority of the public official responsible for the custody and protection of the
arrested person is confused with abuses culminating in disrespect for human dignity.
KEYWORDS: Principles. Human Dignity. Human Rights. Torture. Efficacy.

INTRODUÇÃO

A função social da segurança pública está intrinsecamente relacionada à reestruturação
democrática do Estado Brasileiro, ocorrida nos anos 80 do século passado. É legalmente
vedado e socialmente inaceitável que agentes públicos, detentores do dever legal de proteger
o cidadão, exerçam um aparente direito natural já superado nos recentes estágios da
civilização pela normalização das relações jurídicas, ao praticar atos de tortura contra
custodiados, muitas vezes para obter provas ilícitas.
Entre os crimes relacionados à ação violenta contra a pessoa, aqueles com
características de tortura seguida de homicídio foram, e ainda o são, muitas vezes registrados
como suicídio ou morte natural, principalmente quando se tratava e trata de pessoas sob
custódia do Estado. Existem assentamentos de recorrentes suicídios em regimes de exceção,
em que a morte da vítima consta como natural ou acidental. Mas, para que se chegue a uma
diagnose diferencial acertada (determinação precisa entre suicídio, acidente e homicídio), pela
qual um infrator, autor de tortura assim identificado por prova cabal, não permaneça impune,
cogita-se acerca da eficácia do Princípio proposto e de seu reflexo no ordenamento jurídico
interno e no comportamento social.
O presente tema relaciona-se à atividade profissional desta autora, a perícia criminal,
em continuidade com tema já desenvolvido em pós-graduação em segurança pública1.
Decorre desse contexto profissional a primeira vertente do interesse pelo tema. No
desenvolvimento da monografia daquela especialização, foram questionados os
procedimentos periciais em vítima de tortura, em face do atendimento ao Protocolo
Facultativo brasileiro referente àquele crime, instrumento interno que corresponde ao
direcionamento do Protocolo de Istambul. Para fins do presente artigo, buscou-se aprofundar
nos aspectos teóricos do tema, convergindo para o campo do direito propriamente dito, tanto
pela análise jurídica quanto pela ênfase ao campo sociológico, na busca de unir a experiência
profissional e acadêmica anterior à formação atual, na qual as principais áreas de interesse são
a constitucional, a jusfilosófica e a internacional.
Tendo como objetivo geral estabelecer relação entre a eficácia do Princípio estudado e
a recorrente tortura de pessoas privadas de liberdade, foram adotadas como metas específicas
deste artigo: a) efetuar revisão histórica da proibição da tortura; b) determinar os conceitos de
Princípio e Regra jurídicos, com destaque à norma principiológica referente à tortura; c)
estudar os conceitos de eficácia jurídica e social dos Princípios de Direito, com ênfase à
(in)eficácia social da proibição da tortura. Dessas metas resultaram as três divisões do texto
final.
Quanto à metodologia, a pesquisa baseou-se principalmente em revisão doutrinária e
da legislação em vigor (Constituição da República, Código Penal e Lei de Crimes de Tortura),
para verificação da condição de eficácia entre o Princípio estudado e o ordenamento jurídico
pátrio, assim como para estabelecer uma relação entre o contexto social e a eficiência ou não
da norma analisada. Uma visão fenomenológica e dedutiva permeou toda a pesquisa, visto
tratar-se da análise da eficácia principiológica sobre a factualidade da construção normativa.
As referências foram pesquisadas na biblioteca do CESMAC e no acervo particular da
pesquisadora e do orientador, bem como em arquivos da internet.
Em fase preambular, nota-se ser pacífica a abordagem da tortura sob diversas
perspectivas; porém, em se tratando de conduta2 tipificada nos ordenamentos jurídicos dos
mais diversos Estados, os âmbitos axiológico e sociológico surgem indeléveis nas referências
ao conceito. Considerando que os fatos históricos subsidiam o direito, principalmente nas
democracias, deve-se observar o contexto em que a prática da tortura ocorreu e persiste no
seio da humanidade, destacando-se o cenário social. Com o interesse internacional sobre a
tortura, diversos instrumentos foram criados, visando à sua proibição por representar violação
aos direitos humanos, numa busca incessante de proteção ao mais vulnerável: o custodiado
sob responsabilidade estatal. O art. 1º da Convenção contra a Tortura, adotada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984 (Dec. 40, de 15/02/1991),
vincula a ação de torturar, inicialmente, a conduta de agente representante do Estado. No
cenário mundial, devem-se ressaltar, ainda, os conceitos internacionais e internos relacionados
ao Princípio nº 6 da Resolução 43/173 das Nações Unidas, que insere a proibição da tortura
como tal (Princípio).
1 Em 2010 esta autora, como bolsista da Secretaria Nacional de Segurança Pública, concluiu monografia de
especialização em Políticas e Gestão da Segurança Pública, com o tema: A autonomia da Perícia Oficial
alagoana como instrumento de consolidação dos direitos humanos, à luz do inciso III do art. 5º da Constituição
de 1988: estudo de caso de tortura.
2 Honesko (2008) observa a importância do direito positivo, cuja linguagem prescritiva tem como objeto a
conduta humana direcionada por valores impostos pelo emissor da mensagem.
Em seguida, discorre-se sobre as definições de princípio e de regra como expressões
do mundo do direito, concluindo-se pela interação entre os significados de um e outra. Entre
os princípios que subsidiam a proibição da tortura como tal, encontra-se o da dignidade
humana, também exposto no universo dos direitos humanos internacionais. Todavia a
identificação da proibição da tortura como Princípio, neste artigo, decorre inclusive da
nomenclatura adotada pela Resolução 43/173 antes citada.
De qualquer modo, quer para o sentenciado, quer para aquele que for submetido a
medida cautelar, as prisões brasileiras têm demonstrado total desrespeito à dignidade humana
e evidente descumprimento da legalidade esperada dos agentes de segurança pública. Talvez
esse cenário possa preliminarmente explicar as renovadas denúncias de tortura e de aparentes
suicídios em seus estabelecimentos de custódia, não havendo, porém, justificativa para tal.
Entretanto, sendo notória a ilegalidade dos atos de tortura, e havendo legislação suficiente
para sua proibição ser aplicada com os efeitos jurídicos esperados, cabe uma análise das
condições sociais que podem conduzir à ineficácia do princípio intrínseco. Tal ineficácia
parece decorrer de relações de força, em que o poder dos agentes do Estado impinge ao
vulnerável o exercício de arbitrariedades pautadas no mundo da pessoa, em detrimento do
âmbito do respeito ao indivíduo. Tal prática pode advir do gosto pela vingança privada e da
imposição da submissão ou como técnica de interrogatório, apesar de toda a evolução do
ordenamento jurídico interno, não respeitados os direitos e garantias individuais
constitucionalizados.
Assim, a ineficácia do Princípio da proibição da tortura parece não pertencer ao campo
jurídico mas ao social que o precede.
1 A TORTURA COMO FATO HISTÓRICO
1.1 Histórico
Ao longo da história, observa-se que a tortura apresenta relação direta com os valores
delineadores da sociedade que a pratica, sendo que “Uma das características dos valores é a
sua organização hierárquica. No entanto, esta hierarquia varia de Cultura para Cultura, de
tempos em tempos. Não há uma escala axiológica fixa e universal […]” (HONESKO, 2008, p.
289). Infere-se que, se as situações concretas têm origem em juízos de valor dos homens,
como em um ciclo, conduzem de volta a eles, determinando escolhas justas ou não. O que se
observa é que a perspectiva valorativa pode apresentar proeminência do respeito à liberdade e
aos demais direitos humanos ou da governabilidade, conquanto prevaleça um perfil favorável
aos submetidos ao poder ou o oposto, o dos detentores dele3. Nessa linha de raciocínio,
mesmo considerando que em nenhuma sociedade prevalecerá uma perspectiva pura, deve-se
distinguir que
Se um Estado preza a liberdade de seus cidadãos, buscando sempre um
governo que atenda às suas necessidades (perspectiva ex parte populi), é
evidente que a prática da tortura não é desenvolvida nesta sociedade.
Entretanto, se, ao contrário, um Estado tem como maior objetivo
proporcionar uma governabilidade sem maiores obstáculos para os que estão
3 Honesko (2008, p. 289) cita a obra A Reconstrução dos Direitos Humanos, em que Celso Lafer (1988, p. 125),
distingue as duas perspectivas: ex parte populi (“dos que estão submetidos ao poder”) e ex parte principis (“dos
que detêm o poder e buscam conservá-lo”).
no poder (perspectiva ex parte principis), a tortura será um dos meios para se
alcançar estas finalidades (idem, p. 290).
Sem dúvida, desde a Antiguidade, os seres humanos adotam a tortura como pena
corporal e meio de obtenção de provas, sendo que a primeira finalidade, a de punição ou de
caráter retributivo da pena, cedeu lugar parcialmente à segunda, a de instrumento para a
confissão, mesmo que se tratasse de método evidentemente ilícito, constituindo também
exemplo, para que outros não incorressem nas mesmas faltas graves. Entretanto não havia
proporção entre o mal praticado e a pena imposta ao condenado. A prisão era lugar de
custódia e de tortura, e as legislações disciplinavam os suplícios. A prática era “permitida pelo
Direito da Babilônia” (idem, p. 290). Na época da propalada Lei de Talião, houve uma
gradação do ausente limite da pena, com a aplicação literal da máxima que reflete aquela
norma: olho por olho, dente por dente. O Código de Hamurábi também trazia esse princípio,
permitindo “a empalação, a fogueira, a amputação de órgãos e a quebra de ossos” (SZINICK,
apud GOULART, 2002, p. 21). Os tribunais e juízes da época agiam conformes à
interpretação literal das escassas normas existentes.
Já na Grécia antiga, a tortura era somente permitida contra os escravos, considerados
objetos, sendo que, caso o acusado se recusasse a depor, seria submetido a tormentos, diante
do Areópago, órgão incumbido de julgar crimes graves punidos com pena de morte. “Os
depoimentos de escravos deveriam ser precedidos de tortura. Acreditava-se que sem a tortura
os escravos naturalmente mentiriam, ou para proteger ou para vingar-se de seu senhor”
(LOPES, 2009, p. 24-25). Deriva daí a classificação das provas por Aristóteles, em naturais
ou de evidências empíricas, como as testemunhais, as contratuais e os juramentos, e artificiais,
que procederiam do raciocínio, consubstanciadas em indícios e presunções (idem, p. 25).
Ainda no período clássico, em Roma, admitiam-se três formas de elaboração de
provas: escritos, testemunhas e tormentos, sendo que a simples votação escolhia a
prevalecente. À semelhança do costume grego, no início, a prática somente era aplicada aos
escravos, havendo restrições rigorosas acerca do procedimento. Na fase do Império, os
cidadãos, que eram imunes à tortura, passaram a ser submetidos a ela, em princípio, devido a
traições e, depois, de forma a abranger mais casos, conforme ordem imperial (HONESKO,
2008). Infere-se que a tortura era empregada tanto para a obtenção da prova, quanto para a
aplicação da pena em si, concluindo-se que a ex parte principis passou a prevalecer sobre a ex
parte populi.
Na Idade Média, observa-se, entre os visigodos, a prática da confissão sob tortura,
aceita, porém, apenas se o relato convergisse com a denúncia. Considerava-se a gravidade do
delito e a classe social do acusado. A Igreja, gradualmente, passou a incorporar o direito, com
os governantes apoiando os inquisidores, grandes responsáveis pela tortura na Idade Média. A
água e o ferro quentes eram denominados “Juízos de Deus”, segundo legislações da época. No
séc. XIII, a Inquisição disseminou a perseguição e a tortura em toda a Europa, aplicando-se a
prática mesmo entre os pares da Igreja, em nome da supressão da heresia, o que se estendeu a
crimes de cunho profano, com o passar do tempo. O Manual dos Inquisidores, sistematizado
pelo dominicano Nicolau Eymerich, em 1376, e atualizado pelo religioso de mesma Ordem
Francisco de La Peña, em 1578, prescrevia a quem torturar, conforme insegurança nas
respostas, sujeito de testemunha única ou de vários indícios graves (EYMERICH, apud
GOULART, 2002, p. 27). Resta evidente, dessa época, o uso da tortura como meio de obtenção
da confissão, prática que superou a fase da punição em si.
Deve-se atentar para o “predomínio do Direito Germânico, em que a confissão tinha
um papel importantíssimo nos procedimentos legais” (HONESKO, 2008, p. 291). A queda do
Império Romano do Oriente, ou seja, o marco da Idade Moderna, em 1453, ocorreu nesse
contexto. “No início dessa Era, todas as legislações conhecidas permitiam o uso da tortura
(PAUXIS, apud HONESKO, 2008, p. 291).
Perdurou a prática da tortura na contemporaneidade, tendo Focault relatado, na obra
Vigiar e Punir, a execução por esquartejamento e queima de condenado vivo. O autor
comenta, também, a utilização do tempo como castigo em oposição à resistência física, no
sistema correcional francês (Casa dos jovens detentos em Paris). Mas corrobora que as leis
teriam evoluído a partir do séc. XIX, pela supressão dos costumes e redação de códigos
modernos, impedindo os procedimentos do suplício, disseminando a adoção do júri e
instituindo o objetivo da pena como correção. “Desapareceu o corpo como alvo principal da
repressão penal” (FOCAULT , p. 12, grifo nosso). Com o fim dos espetáculos públicos, sendo
a execução vista como “uma fornalha em que se acende a violência”, a punição se tornou “a
parte mais velada do processo penal”, [como] “consciência abstrata” (idem, p. 13). A eficácia
da lei estaria na fatalidade ou certeza de aplicação da pena, e não na sua visibilidade.
Mais um fator pode ter concorrido para o acirramento da prática da tortura, quando,
nos séc. XVI e XVII, cada vez mais a miséria passou a devastar a Europa, com longas guerras
e doenças avassaladoras sobre as crescentes aglomerações urbanas, culminando com o
incremento da criminalidade. Pode-se inferir o contexto social e jurídico que permitia torturas
públicas. Entretanto, passou-se a perceber que, apesar do rigor, não se resolviam questões
ligadas ao crime, consolidando-se, no séc. XVIII, um movimento contrário às práticas em
vigor. Nesse caminho, “A Ilustração teve um papel primordial na formação da Cultura que
tem a dignidade da pessoa humana como o valor por excelência” (HONESKO, 2008, p. 291).
O Absolutismo monárquico inglês dava lugar ao novo ideário intelectual iluminista, com o
declínio da caça às bruxas medieval. Dessa maneira, ainda em 1764, na italiana Livorno,
anonimamente, e posteriormente em Milão, publicava-se a obra Dos Delitos e das Penas, de
Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, constituindo síntese da filosofia francesa aplicada ao
direito e atuando contra o processo penal italiano da época, herdeiro das Institutas de
Justiniano, consagradoras de penas cruéis e desumanas, subsidiadas ainda pelos cânones da
Santa Inquisição. Para o célebre autor milanês, a tortura era:
Uma crueldade consagrada, de uso na maior parte das nações […] enquanto
se forma o processo, ou para constrangê-lo [o réu] a confessar um delito, ou
para as contradições nas quais incorre, ou para a descoberta dos cúmplices,
ou por não sei qual metafísica e incompreensível purgação de infâmia, ou
finalmente para outros delitos dos quais poderia ser culpado, mas dos quais
não é acusado (BECCARIA, 2005, p. 63).
Beccaria desenvolveu críticas às violências físicas impingidas a suspeitos e
sentenciados da época, denunciou o uso da lei em favor de minorias privilegiadas, dando
ênfase à inaceitável desproporção entre os danos causados e as sanções correspondentes.
Também advogou pela moderação das penas e pelo estímulo premiado à captura de suspeitos,
condenando a tortura, sob a qual alega ser inútil a confissão. Abordou, ainda, a necessidade da
adoção do direito penal do cidadão, no lugar do direito penal do inimigo, com incursões que
parecem antever à hodierna tendência descriminalizadora do direito penal. Resta evidente,
para o autor, a necessidade de que o delito seja provado por outros meios, que não a confissão
ou a testemunha, fato ainda mais relevante quando a tortura era o meio corriqueiro para a
obtenção de tais evidências espúrias. É desconcertante imaginar que, em nossos dias, a tortura
ainda seja prática comum e talvez considerada natural entre agentes da lei, quando Beccaria já
a criticava no cenário do avançado séc. XVIII, conjeturando que
Crê-se que a dor, que é uma sensação, purgue a infâmia, que é uma mera
relação moral. É ela, talvez, um depurador? E a infâmia é, talvez, um corpo
misto impuro? […] Este costume parece preso às idéias religiosas e
espirituais, que têm tanta influência sobre os pensamentos dos homens, sobre
as nações e seus séculos (idem, p. 64-65).
O marquês de Beccaria defendeu, ainda, “um dos postulados básicos da licitude da
produção de provas, o de que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo”
(GOULART, 2002, p. 31). A obra teve grande reflexo em toda a Europa, em consonância
com o período da Idade das Luzes, que trouxe novos auspícios à modernidade. Aboliu-se a
tortura em Nápoles, com a exigência de sentença motivada para as condenações. O mesmo
ocorreu por édito francês, em 1788, incluindo reparação moral em caso de absolvição. A
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, surgida na França, em 1789, não menciona
a tortura, mas sua proibição depreende-se de seus princípios (HONESKO, 2008).
No Brasil, o Código Criminal de 1830, baseou-se no projeto de Bernardo Pereira de
Vasconcelos, influenciado pelas ideias de Beccaria, sendo, portanto, marcado pelo
humanismo e pela abolição das penas corporais, exceto o açoite para escravos. Em 1832, o
“primeiro Código de Processo Criminal aboliu por completo a tortura como meio de prova e
investigação, banindo o sistema inquisitorial e adotando o sistema acusatório” (GOULART,
2002, p. 40).
Apesar de nos novos tempos serem percebidas importantes mudanças nas legislações
dos diversos Estados, os dois grandes conflitos bélicos mundiais, entre outros, não
constituíram palcos isentos à tortura. Pelo contrário, os horrores característicos daqueles
eventos parecem incluir a prática como condição natural de ação contra o inimigo, o que seria
inaceitável para a civilização humana. Mesmo assim, observa-se atualmente a continuidade da
ocorrência, como em recentes divulgações na mídia, referentes à Guerra do Afeganistão
(2001…) e do Iraque (2003/2011). Ressalve-se que:
as barbáries cometidas durante a Segunda Guerra Mundial […] levaram a
humanidade a refletir sobre as violações dos direitos humanos. Nasceu em
âmbito global um forte movimento em favor da internacionalização da
proteção aos direitos humanos, sob a direção de uma perspectiva ex parte
populi talvez nunca vista na humanidade (HONESKO, 2008, p. 291).
Como evidência da internacionalização dos direitos humanos que se anunciava,
convocou-se o Tribunal de Nurenberg, conforme acordo realizado em Londres, em 1945,
colegiado esse responsável pelo julgamento das atrocidades cometidas no primeiro grande
conflito mundial; enquanto, no mesmo ano, constituíam-se as Nações Unidas (id. ibidem).
1.2 Instrumentos Internacionais de Proteção Contra a Tortura
Entre os instrumentos mais relevantes, destaca-se a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH), de 1948, que representou “afirmação de uma ética universal, ao consagrar
um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados” (PIOVESAN,
apud HONESKO, 2008, p. 292).
Após a criação das Nações Unidas, outros instrumentos internacionais relacionados
aos direitos humanos e à proibição da tortura foram elaborados e celebrados em acordos,
destacando-se: a Convenção Europeia para a Proteção de Direitos Humanos e das Liberdades
Fundamentais (Roma, 1950), as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos (RMTR, de
1955), a Convenção de Viena sobre Relações Consulares (1963), o Pacto Internacional sobre
os Direitos Civis e Políticos (PIDCP, de 1966), a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de San Jose, 1969), a Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas
contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1975), a
Convenção [das Nações Unidas] contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis,
Desumanos ou Degradantes (1984), a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a
Tortura (CIAPST, de 1985), o Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas
Submetidas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão (1988), o Estatuto de Roma do Tribunal
Penal Internacional (1998), o Protocolo de Istambul (2001) e o Protocolo Facultativo à
Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou
Degradantes (2002). Deve-se registrar a recente elaboração do Protocolo Brasileiro.
Apesar de todos esses esforços,
o século XX viveu sob a sombra da tortura [que] continua sendo praticada
secreta e clandestinamente, caracterizando-se pela preocupação com a
preservação da anatomia do torturado [por] métodos ‘brancos’ ou ‘limpos’
que não deixam marcas [para] manter formalmente a imagem de um Estado
preocupado com os direitos humanos (HONESKO, 2008, p. 292, grifo do
autor).
Tal leque de normas instiga a busca pelos meios da eficácia da norma comum contida
nos diversos instrumentos. Mas, antes disso, alguns conceitos devem ser estabelecidos.
2 CONCEITOS ESSENCIAIS: PRINCÍPIO, REGRA, DIGNIDADE HUMANA, DIREITOS
HUMANOS E LEGISLAÇÃO INTERNA
2.1 Princípio e Regra
A noção do que vem a ser Princípio4 de Direito permeia todos os campos jurídicos
desde tempos mais remotos e, estando explícita no título deste artigo, fez-se necessário expor
seu conceito, assim como a propalada relação com a concepção de Regra.
O termo Princípio teria origem na linguagem da geometria, fazendo acepção a
“verdades primeiras […] porque estão ao princípio [constituindo] as premissas de todo um
sistema […]” (PICAZO, apud BONAVIDES, 2008, p. 255-256, grifo nosso). Assim, de
acordo com o referido autor, os Princípios “são verdades objetivas, nem sempre pertencentes
ao mundo do ser, senão do dever-ser, na qualidade de normas jurídicas” (idem, p. 256).
A reiteração da norma constitucional brasileira pertinente à proibição da prática da
tortura, em sede de direitos fundamentais, torna ainda mais importante a distinção entre Regra
e Princípio (CANOTILHO, 2003).
Vale frisar que a normatividade não implica existência positivada do Princípio,
podendo constar ou não nos diversos ordenamentos jurídicos. É o que se deduz da lição de F.
Clemente, que, pelos idos de 1916, ainda numa época de concepção civilista dos Princípios,
4 O uso de inicial maiúscula visa ao destaque necessário conferido ao termo Princípio, por adequação textual ao
tema proposto, estendendo-se a eventuais locuções adjetivas, v.g., Princípios de Direito. Naturalmente, conforme
a normalização técnica do trabalho científico, a maiúscula não será utilizada nas transcrições de textos originais
em que não tiver sido adotada.
asseverava tal prescindibilidade. Para ele: “Princípio de direito é o pensamento diretivo que
domina e serve de base à formação das disposições singulares de Direito de uma instituição
jurídica, de um Código ou de todo um Direito Positivo” (CLEMENTE, apud BONAVIDES,
2008, p. 256).
Entretanto, para alguns autores, o conceito de Princípio padece de precisão. Faz-se
referência, por exemplo, à “omissão daquele traço que é qualitativamente o passo mais largo
dado pela doutrina contemporânea para a caracterização dos princípios, a saber, o traço de sua
normatividade” (BONAVIDES, 2008, p. 257). É válida uma conceituação de 1952, segundo a
qual:
Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como
determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõe,
desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais
particulares (menos gerais), das quais determinam, e portanto resumem,
potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam,
ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém
(CRISAFULLI, apud BONAVIDES, 2008, p. 257).
Segundo estudo de Ricardo Guastini, os juristas atribuem seis conceitos distintos ao
termo Princípio, sendo eles normas de caráter: geral, indeterminado e carente de interpretação
para o caso concreto, programático, hierárquico elevado, fundamental no sistema jurídico ou
político (ou em ambos, incluindo subsistemas), e diretivo da escolha dos dispositivos
aplicáveis a casos diversos (BONAVIDES, 2008, p. 257).
Note-se que: “Quer as normas garantidoras de direitos subjectivos quer as normas
impositivas de obrigações objectivas ao Estado podem ter a natureza de princípio”
(CANOTILHO, 2003, p. 1256).
Resta pacífico, portanto, o caráter normativo dos Princípios de Direito, considerandose
fundamental tal característica, decorrente da função que a ideia encerra, para que se passe,
enfim, ao essencial do conceito, ou seja, “compreender a natureza, a essência e os rumos do
constitucionalismo contemporâneo [pois os princípios] uma vez constitucionalizados, se
fazem a chave de todo o sistema normativo” (BONAVIDES, 2008, p. 258).
Do exposto, infere-se que a dificuldade na conceituação de Princípio de Direito pode
estar na hierarquia de que eles fazem parte na interpretação das normas jurídicas e sua
aplicação aos casos concretos. Frise-se que tal função da hermenêutica jurídica sofreu
alterações de acordo com a evolução histórica.
Assim sendo, reitera-se que a teoria dos Princípios sofreu reformulações, de acordo
com a posição de que a ideia desfrutava entre as fontes do Direito, relevada sua
imperatividade. Observa-se que “Muito antes de a teoria constitucional professá-los como
verdades fundantes do sistema e consagrá-los como oráculos das opções constitucionais, os
princípios constitucionais eram formulados como princípios gerais de direito” (JACINTHO,
2008, p. 51). Note-se que a autora trata de Princípios Constitucionais, nomenclatura adequada
ao tema deste artigo.
Mas, antes dessa verdadeira especialização (constitucionalização), dir-se-ia,
genericamente, que os Princípios constituem uma “superfonte de direito, sobrepondo-se à lei e
aos costumes, e servindo-lhe como fonte das fontes” (idem, p. 57). Assim, deduz-se, quanto à
aplicação do Direito, que a tríplice vinculação das vertentes jurisprudenciais acerca de
valores, problemas e normas põe em evidência o cerne estruturante dos Princípios à luz
publicista da contemporaneidade.
Após esse introito, deve-se abordar uma potencial interação entre Princípio e Regra
jurídicos, a partir de sua distinção. Sem dúvida, o sistema normativo abrange tanto um quanto
outra, com ênfase, inclusive, à própria positivação de determinados Princípios, como o da
dignidade humana, já constitucionalizado5.
De acordo com conceito clássico:
O princípio é um mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce
dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão
e inteligência, exatamente por definir a lógica e racionalidade do sistema
normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico (MELLO
(1999, p. 450-451).
Por sua vez, na doutrina portuguesa, “Regras […] são normas que, verificados
determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem
qualquer excepção (direito definitivo)”, sendo particularmente relevante notar que o publicista
exemplifica como Regra, e não como Princípio, o art. 25º/2 da Constituição lusitana, que, à
simetria do inc. II do art. 5º da Constituição pátria, proíbe a prática da tortura (CANOTILHO,
2003, p. 1255, grifo do autor). Em contrapartida, o autor ainda ensina que:
Princípios são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma
possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas [e] não proíbem,
permitem ou exigem algo em termos de ‘tudo ou nada’; impõem a
optimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a ‘reserva
do possível’ fática ou jurídica (idem, grifo do autor).
Resume-se que, para esse autor, a distinção maior está no cerne da exigência,
proibição ou permissão do comando normativo, definitivo, nas Regras, enquanto limitado
pelo campo das possibilidades fáticas ou jurídicas, nos Princípios.
Parte da doutrina, porém, “entende que a distinção […] é meramente de grau – […]
concepção débil dos princípios; [enquanto outra parte] postula que a distinção vai além do
grau, atingindo a qualidade dos enunciados normativos [e constituindo a] concepção forte dos
princípios” (JACINTHO, 2008, p. 62-63, grifo da autora).
Os conceitos também são relacionados qualitativamente: pelo grau de abstração ou
generalidade, pelo nível de aplicabilidade e pela posição de fundamentalidade, segundo os
quais, respectivamente, haveria superioridade, imprecisão e maior hierarquia dos Princípios,
diante das Regras, por sua vez, inferiores, determinantes e submetidas. Segundo Jacintho (id.
ibidem), na moderna dogmática constitucional, um critério postula a definitividade na
distinção de tais conceitos, com maior foco no aspecto qualitativo. Essa ideia nos remete ao
conceito de Canotilho, já exposto, retomando-se a necessidade de realização do possível,
dentro das condições fáticas e jurídicas do caso.
5 Há uma comunicação dialética entre Princípios e Regras, apresentando, entre si, semelhanças e diferenças.
Ressalve-se que “[…] tanto princípios como regras são normas, porquanto são ambos comandos de dever ser,
cujo operador deôntico expressa uma obrigação, uma proibição ou uma permissão” (JACINTHO, 2008, p. 58).
Deduz-se, ainda, que cada Regra tem por função a realização de um Princípio, como
ideia central de um sistema, determinando a possibilidade no caso concreto. Assim, vale
frisar, para os fins do presente tema, na abordagem da proibição da tortura como Princípio de
Direito, que este se torna mais preciso e determinante “à medida que o bem jurídico que ele
protege vai se firmando como a solução mais viável no caso concreto […]” (idem, p. 65).
Canotilho (2003) discorre sobre as fundamentações subjetiva e objetiva das normas
(Princípio ou Regra) que consagram direitos fundamentais, sugerindo uma presunção de
prevalência da primeira sobre a segunda e revelando que, ainda que se considere nessa tese “a
vantagem de apontar para o dever objectivo do Estado” de efetivação daqueles direitos, eles
são também reconhecidos como “do homem, seja como indivíduo seja como membro de
formações sociais onde desenvolve a sua personalidade”. Deduz-se, da lição do doutrinador,
que os direitos fundamentais dizem respeito ao individual e ao coletivo, na medida de suas
declarações, que, releve-se, podem ser explícitas ou implícitas, induzindo, no que tange à
eficácia do Princípio analisado, a uma reflexão acerca das garantias constitucionais e legais
necessárias à efetivação desses direitos.
2.2 Dignidade Humana e Direitos Humanos
Sustenta-se hoje a ideia de que a prevalência de um Princípio ou outro é relativa, pois
sempre se verifica uma concorrência entre mandamentos dessa natureza, sendo que, na busca
da harmonização do sistema constitucional, pela unidade material que ali se encerra, o
Princípio da dignidade humana é o fio condutor da eficácia no caso concreto. Assim,
Considerando-se, pois, a dignidade da pessoa humana como eixo central da
ordem constitucional, essa unidade se apresenta menos como estrutural, no
sentido de ser uma unidade pronta, forçada, formal, e muito mais como
tarefa a ser empreendida pelo operador do direito com o objetivo de prover
ao complexo de sistemas a unidade material imprescindível ao seu
funcionamento eficaz (JACINTHO, 2008, p. 66).
A moderna construção do ideal de dignidade humana se deu no seio da publicização
dos Princípios de Direito, decorrente das “modificações de paradigmas do conhecimento
científico engendrados pelo final da II Guerra Mundial e as consequentes descobertas
acerca do mal que o Estado organizado para a destruição pode causar” (idem, p. 52). Deduzse,
daí, a patente despositivização dos Princípios, já abordada.
Considera-se que a dignidade humana, como um dos Princípios basilares da República
Federativa do Brasil, configura-se em sustentáculo para a proibição da tortura, significando o
respeito pela vida e pela integridade física, em que a prática desse crime constitui violação a
direitos fundamentais de âmbito internacional.
É preciso observar que, no Brasil, as conquistas relacionadas aos direitos humanos
refletem o histórico mundial de luta dos desfavorecidos, passando a se positivar no Título II
da Constituição de 1988.
Nesse cenário, observa-se que, semelhante ao contido no art. 3º da Declaração
Universal de Diretos Humanos (DUDH)6, o inciso III do art. 5º da Constituição da República
(CR) prescreve que: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
6 Art. 5º da DUDH: “Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante”.
degradante”. Desde seu art. 1º, nossa Constituição expõe como um de seus fundamentos, no
inciso III, “a dignidade da pessoa humana”, dentro de um Estado Democrático de Direito, o
que também alicerça as relações internacionais, em princípios como a “prevalência dos
direitos humanos” (art. 4º, II, da CR).
É sabido que nossa Lei Maior originou-se de um movimento nacional pela
redemocratização do país, que emergia de um regime opressor, instalado em 1964. Trata-se de
um momento de ruptura entre a ditadura militar, à qual foram atribuídos vários crimes,
inclusive de tortura, e o ideal de uma nova era de respeito aos direitos humanos, até então
usurpados pelos próprios representantes do Estado.
A disciplina dos Direitos Humanos surgiu como autônoma no escopo do Direito
Internacional Público, para conferir eficácia aos direitos fundamentais previstos nas
legislações internas, por meio de normas que tutelam bens primordiais, como a vida e a
dignidade, e instrumentos políticos e jurídicos para sua proteção.
O art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, anexo à Carta das Nações
Unidas (Dec. 19841, de 1945), traz as convenções internacionais e os costumes como fontes
principais do Direito Internacional. Atente-se que há controvérsias acerca das Resoluções da
ONU, como fontes subsidiárias, principalmente na sua aplicação a Estados-membros da Corte
que não as tenham cumprido. Entretanto, é evidente que o Estado é responsável pela conduta
dos agentes de segurança pública, que atuam em seu nome, e, sendo signatário de uma
convenção internacional, a violação de qualquer das previsões da mesma é motivo para
responsabilização.
No esteio dos instrumentos internacionais, com base no já referido art. 1º da
Convenção contra a Tortura, de 1984, destaca-se como definição da ação de torturar:
todo ato pelo qual um funcionário público, ou outra pessoa por instigação
sua, inflija intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos graves,
físicos ou mentais, com o fim de obter dela ou de um terceiro informação ou
confissão, de castigá-la por um ato que tenha cometido ou se suspeite que
tenha cometido, ou de intimidar essa pessoa ou outras (ONU, 2012).
É com esse limite, de tortura como ato específico do agente público, que o tema será
abordado, por evidenciar a ação sobre indivíduo que esteja sob a responsabilidade do Estado,
considerando a proibição da prática como Princípio que confere lastro a direitos
fundamentais, tanto no aspecto subjetivo quanto no objetivo.
Para a Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a Tortura e outras
Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes7, adotada pela Assembleia Geral
(ONU, 2012), o ato da tortura é uma ofensa contra a dignidade humana e será condenado
como uma negação aos propósitos da Carta das Nações Unidas e como uma violação aos
direitos e liberdades fundamentais afirmados na Declaração Universal dos Direitos do
Homem e em outros instrumentos internacionais relacionados.
Por sua vez, o Princípio nº 6, adotado na Resolução da Assembleia Geral nº 43/173
das Nações Unidas, de 09/12/1988 orienta que:
7 Observe-se que a expressão penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes não foi definida pela
Assembleia Geral, mas deve ser interpretada de forma a abranger uma proteção tão ampla quanto possível contra
abusos físicos ou mentais. Tal conceito não será abordado no presente artigo, conforme comentado adiante.
Nenhuma pessoa sujeita a qualquer forma de detenção ou prisão será
submetida a tortura ou a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes. Nenhuma circunstância, seja ela qual for, poderá ser invocada
para justificar a tortura ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes (ONU, 2012).
Para os fins deste trabalho, considera-se a primeira parte do Princípio, que consiste na
proibição da tortura a pessoas privadas de liberdade. Após as anteriores considerações
conceituais, por questões meramente formais, para os moldes deste artigo, adotou-se a
proibição da tortura como Princípio, tendo como escopo a nomenclatura da Resolução dessa
Assembleia.
Ainda conceitualmente, observe-se que o art. 1º da Convenção contra a Tortura,
adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984, conceitua:
Para fins da presente Convenção, o termo ‘tortura’ designa qualquer ato pelo
qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos
intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa,
informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa
tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir
esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em
discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são
infligidos por funcionário público ou por outra pessoa no exercício de
funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou
aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que
sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam
inerentes a tais sanções ou delas decorram (ONU, 2012).
Dessa forma, infere-se, entre os conceitos de direitos humanos e direitos fundamentais,
que a proibição da tortura paira sob a égide da proteção à dignidade humana.
Ressalte-se que, apesar da evolução das Constituições atuais, o último relatório anual
da Anistia Internacional registrou casos de tortura e maus-tratos em 124 países – africanos,
árabes e latino-americanos – tais como a China, a Indonésia, o Irã, o Paquistão e a Turquia.
As autoridades israelenses denominam-na “pressão física moderada” e é usada contra os
palestinos. Já a brutalidade da polícia alemã contra estrangeiros não se resume a incidentes
isolados, enquanto o Reino Unido exportou equipamento de tortura. Também são de
conhecimento público as prisões ilegais, torturas e execuções pelos grupos armados de
oposição, como o ETA espanhol e o Tupac Amaru peruano (SEDH, 2001, p.67). Mais
recentemente, tornaram-se alvo de crítica internacional episódios de tortura por norteamericanos
nas prisões do Iraque e na negativamente célebre Guantânamo8.
Quanto ao Brasil, segundo o Protocolo Brasileiro (2005, p. 56), no âmbito do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos, registram-se:
93 casos de alegada violação dos direitos humanos [sendo que] 17 estão em
fase de cumprimento das recomendações (relatório do artigo 51, da
Convenção) e acham-se em andamento sete processos de negociação de
solução amistosa de casos em relação aos quais o Brasil assume sua
responsabilidade pelas violações e dispõe-se a reparar as vítimas ou seus
8 “Imagens de presos iraquianos vítimas de maus tratos por parte de estadunidenses, divulgadas pela mídia do
mundo inteiro, geram críticas dentro e fora dos EUA e colocam mais um problema para a administração Bush e
para a política de ocupação no Iraque” (ALVARENGA, 2004).
familiares pelos danos causados, além de adotar outras medidas destinadas a
punir os responsáveis e a impedir que práticas assemelhadas se repitam.
Tais fatos ocorrem apesar da existência de norma infraconstitucional, a Lei n° 9455/97
(BRASIL, 2012), que define os crimes de tortura e, em seu art. 1º, inciso II, particulariza o
tipo legal para o sujeito ativo que “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade,
com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como
forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”. Evidentemente os atos
intrínsecos à medida legal não constituem tortura, como a própria privação da liberdade. A
referida norma prescreve causa de aumento de pena ao infrator que seja agente público (§4º,
I), culminando, inclusive, em perda do cargo, função ou emprego público (§5º). Frise-se que
se trata de crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (art. 5º, XLIII, da CR)9.
Sem dúvida, a responsabilidade do Estado na custódia da pessoa privada de liberdade
independe da presunção de não-culpabilidade. Trata-se de pessoas mais vulneráveis a risco de
violação aos direitos humanos. Enfim, a autoridade tem, por previsão legal, a obrigação de
protegê-las e assegurar-lhes bem-estar.
3 EFICÁCIA DO PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA TORTURA
3.1 Eficácia Jurídica do Princípio da Proibição da Tortura
Para Kelsen (apud CUNHA JÚNIOR, 2009), a validade da norma jurídica10,
pertenceria à seara do dever-ser, enquanto a eficácia, à do ser, correspondendo a sua aplicação
fática, então observada na conduta humana, traduzindo-se em efetividade, em termo mais
acurado. O autor ressalva que a validade pressupõe um mínimo de eficácia, evidenciando-se a
exata conexão existente entre os dois conceitos (CUNHA JÚNIOR, 2009).
Autores diversos referem-se à eficácia como qualidade da norma para produzir efeitos
jurídicos concretos. Nesse ponto, Diniz (2001, p. 30) relaciona tal concretude à condição
técnica de aplicação da norma, segundo sua observância pela coletividade, e à adequação
entre a realidade social disciplinada e os valores vigentes.
Assim, segundo Cunha Júnior (2009, p. 159, grifo do autor), “Com efeito, as
condições fáticas e técnicas de atuação da norma jurídica […] correspondem, respectivamente,
à eficácia social e à eficácia jurídica da norma”. Infere-se que a eficácia jurídica, que
interessa ao Direito, relaciona-se diretamente à capacidade de atingir os objetivos previstos na
própria norma, implicando efeitos jurídicos, ao regular situações, relações e comportamentos,
limitada ao campo das possibilidades, enquanto eficácia social, que interessa à Sociologia,
uma das fontes do Direito, refere-se à efetividade da obediência e aplicação da norma,
aproximando-se do conceito kelseniano. Assim, com ressalvas, as normas de direito
apresentam eficácia jurídica, mas nem todas obtêm eficácia social, sendo a primeira condição
dessa última.
9 Segundo o art. 33, do Código Penal (BRASIL, 2012), “Aquele que se omite em face dessas condutas, quando
tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos”. A pena de detenção
terá início, no máximo, no regime semi-aberto, exceto se houver necessidade de transferência.
10 Segundo autores diversos, entre eles Cunha Júnior (2009), são condições de aplicabilidade da norma jurídica:
a vigência, a validade e a eficácia. Para os fins deste artigo, consideramos superada qualquer discussão acerca da
vigência, detendo-nos na definição das demais condições.
Especialmente as normas constitucionais podem ser diferenciadas em preceptivas,
determinando uma conduta positiva, ou proibitivas, estabelecendo uma omissão. Depreendese
que o Princípio da proibição da tortura, contido no inc. III do art. 5º da CF/88, corresponde
a texto proibitivo.
Mas na seara constitucional, que consagra o Princípio da proibição da tortura, muitos
aspectos podem ser explorados, como diversas divisões que adotam determinados critérios,
como se segue. Por exemplo, deve-se destacar a classificação de Afonso da Silva (2012), com
base em Crisafulli, segundo a qual as normas constitucionais, a que pertence o Princípio ora
estudado, podem apresentar eficácia: plena, independentes de integração, sendo
autoaplicáveis e incidindo direta e imediatamente sobre a matéria; contida, sendo
autoaplicáveis, mas com possibilidade de restrição por legislação posterior ou interpretação de
que não dependem necessariamente; e de eficácia limitada, dotadas de aplicabilidade mediata,
dependentes de normalização legislativa posterior para a devida aplicação.
Quer seja considerado Princípio, quer constitua positivação específica, é notório que
existe descumprimento das normas legais pertinentes à proibição da tortura no Brasil, e,
havendo legislação suficiente para ser aplicada com eficácia jurídica, cabe uma análise das
condições sociais que podem conduzir à ineficácia desse imperativo intrínseco.
3.2 (In)eficácia Social do Princípio da Proibição da Tortura
No contexto nacional, não olvidado o período escravocrata, deve-se ressaltar que a
tortura foi a maneira sistemática característica da repressão do regime militar instaurado em
1964. Isso ocorria até mesmo na suposta fase processual das ações judiciais, contra os
acusados de traição ao Estado, sendo “instrumento rotineiro nos interrogatórios sobre
atividades de oposição ao regime” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 2011, p. 55).
Atribui-se a essa fase histórica o fortalecimento do caráter militarizado das polícias, pelo qual
era adotada uma posição de inimigos daqueles que ousassem se opor ao período de exceção,
os quais não eram considerados cidadãos. Os Atos Institucionais foram a legalização do
regime ditatorial , por meio de órgãos como o Conselho de Segurança Nacional e o Serviço
Nacional de Inteligência. Toda a estrutura jurídico-política era repressiva e controladora, com
leis, como a de Imprensa, e censura à expressão intelectual e artística (id. ibidem).
Dessa forma, entre os brasileiros, talvez a ancestralidade da prática da tortura pertença
a período cultural ainda anterior à ditadura armada, realimentado por técnicas perversas nesse
período histórico.
Sem dúvida, observa-se que, no Brasil, são comuns práticas coletivas como o
Carnaval, a passeata e a procissão. Enquanto tais rituais representam uma peculiar face de
fusão de diferentes estamentos da sociedade brasileira, como se fossem festas de
congraçamento das diferentes instâncias, a expressão Sabe com quem está falando? torna
evidente o descompasso dos interesses antagônicos dos atores do domínio social, trazendo à
tona as relações pessoais (da pessoa), que caracterizam nosso povo, em detrimento do
predomínio do âmbito individual (do indivíduo). Trata-se de um rito, uma combinação de
momentos do cotidiano, para salientar os aspectos da diferenciação com emprego de reforço,
inversão ou neutralização, ou seja, respectivamente, busca de respeito por meio da imposição,
saída de situações de humilhação pela jocosidade e evitação de momentos constrangedores.
São instrumentos utilizados para dar clareza às relações sociais: sagrado e profano, local e
nacional, formal e informal (DAMATTA, 1997).
É evidente que o Brasil apresenta profundas crises de ordem social, mas seu povo seria
avesso ao conflito, resolvendo-o com as relações pessoais, subjugando outros eixos
classificatórios do mundo da rua, que realizariam o individual, como a própria lei. Seria uma
sociedade que não reconhece o conflito.
Nas sociedades baseadas no indivíduo, a “crise indica algo a ser corrigido” (idem, p.
183); no Brasil, o sinal de uma catástrofe, o fim do mundo, a fraqueza difícil de admitir.
Conforme pesquisa realizada por DaMatta (1997), há u

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